Transcrevo aqui o te4xto de ANTONIO PRATA da Folha.com que nos trás um pouco de pontos a pensar sobre o ocorrido em Santa Maria.
Acho que já contei aqui a história, mas a ocasião me permite repeti-la.
Eu tinha 18 anos e estava em minha primeira aula de filosofia, na USP. O
professor, Renato Janine Ribeiro, nos explicava que no fim do semestre
seríamos avaliados por um trabalho individual, cujo limite deveria ser
de 8.000 caracteres. Levantei a mão: "Se estourar um pouquinho esse
limite, tudo bem, né?". Janine sorriu e disse algo mais ou menos assim:
"O que é 'limite'? É aquilo que não se pode transpor. Mas vejam como são
as coisas no Brasil: entre nós, o limite não limita! Repito: o limite é
de 8.000 caracteres".
Peço perdão ao filósofo se as palavras não foram exatamente essas.
Assim, porém, é que ficaram gravadas na minha memória e é assim que me
voltam, quase todo dia, quando me deparo com a nossa ilimitada
necessidade de burlar a lei.
Há uma altura máxima para prédios na rota do aeroporto, mas o
empreiteiro constrói um "puxadinho", alguns metros acima. A construtora
precisa botar de tantos em tantos metros, sob o concreto da rodovia,
umas ripas de metal, mas economiza dinheiro aumentando a distância entre
elas. Quantas pessoas que compraram a carta de motorista você conhece?
Que têm gato de TV a cabo? Que já subornaram um guarda de trânsito para
não ser multado? O avião vai decolar, o comissário de bordo pede para
desligarem os celulares, mas o sujeito o ignora solenemente. O avião
pousa, o comissário pede aos passageiros para que aguardem sentados até o
"apagar do aviso luminoso de atar cintos", mas todo mundo levanta. Não
um, não dois: todo mundo --como se respeitar aquele simples sinal
luminoso equivalesse a ter a palavra otário escrita na testa.
Um sinal luminoso também piscou na cabine do Fokker 100 da TAM, que
taxiava na pista de Congonhas na manhã de 31 de outubro de 1996,
alertando sobre um problema no reverso da turbina. O piloto o desligou. O
luminoso piscou novamente, novamente foi desligado. Segundo o
depoimento de outro piloto, dias mais tarde, esse era o costume: se
fossem dar atenção a todo alarme que soava na cabine, nenhuma aeronave
saía do chão. Às vezes, ao que parece, alarmes soam à toa. Às vezes,
não: 24 segundos depois de decolar, o avião caiu, matando 99 pessoas.
Eu estava saindo para a USP, naquela manhã, quando o telefone tocou. Uma
amiga do meu pai queria saber se era verdade que meu tio Duda, irmão da
minha mãe e meu padrinho, estava entre os passageiros. Liguei a
televisão. Vi a lista. Era verdade.
Nas próximas semanas, o Brasil concentrará suas energias em encontrar os
culpados pela tragédia de Santa Maria. É fundamental, se houver
culpados (como parece ser o caso), que eles sejam punidos. É fundamental
que as casas de show passem por reavaliações, como já estão passando.
Mas se não mudarmos a nossa mentalidade, se não entendermos que as leis
são universais, que há procedimentos que precisam ser executados
conforme as regras, sem jeitinho, sem gambiarra, em TODAS as esferas,
por TODAS as pessoas, as tragédias continuarão acontecendo --e a morte é
um limite que nós, brasileiros, por mais espertos que nos julguemos,
não somos capazes de transgredir.
Fonte: antonioprata.folha@uol.com.br
@antonioprata